O leite é o meio de cultura ideal para o crescimento de diversos tipos de microrganismos. Dentre os mais importantes, destacamos as bactérias. Elas representam uma relação de amor e ódio entre as Indústrias, uma vez que podem ser tanto desejáveis (produção de derivados lácteos), como indesejáveis (patógenos).
As bactérias lácteas possuem a capacidade de fermentar a lactose, principal carboidrato do leite, originando quantidades consideráveis de ácido lático e ácido pirúvico.
A pasteurização do leite garantiu a inocuidade dos derivados lácteos, mas ao mesmo tempo “esterilizou” a flora natural dele. Com isso, surgiu a necessidade da utilização de culturas lácteas liofilizadas para a produção dos derivados lácteos, no qual grupo de microrganismos são identificados, selecionados, quantificados, liofilizados e comercializados.
Na liofilização, após o produto estar congelado a temperaturas inferiores a 30ºC, ele é submetido a uma pressão negativa (vácuo), fazendo com que a água do produto seja retirada por sublimação, ou seja, passe diretamente do estado sólido para o gasoso. Isso preserva as características físico-químicas e microbiológicas do produto.
Agora vou apresentar um
Dossiê com as Principais Culturas Lácteas utilizadas a nível Industrial.
Fermentos Lácticos
Fermentos lácticos são culturas puras em proporções definidas de diferentes bactérias lácticas que se multiplicam no leite e no queijo assegurando as funções essenciais.
É um ingrediente indispensável na fabricação de queijos e possui três funções básicas:
a) Desenvolvimento de acidez - indispensável na fabricação da grande maioria dos queijos fabricados, onde as bactérias metabolizam a lactose formando moléculas de ácido lático e normalmente ocorre uma parte no tanque de fabricação e outra parte já no queijo enformado (durante a prensagem, salga e no início da maturação).
b) Formação de olhaduras - bactérias consomem o lactato de sódio (sal do ácido lático) produzindo ácido propiônico, ácido acético e CO2. A presença de olhaduras na massa do queijo é uma característica típica de alguns queijos tais como: Reino, Estepe, Suíço, Gouda, etc.
c) Formação de sabor e aroma – é um complexo bioquímico que ocorre durante a maturação do queijo. A caseína, principal proteína do leite é degradada (proteólise) em compostos menores que modificam a estrutura do queijo tornando-a mais macia, solúvel e alterando o sabor do queijo. A gordura também por ação de enzimas lipolíticas (lipólise) vai sendo degradada e conferindo sabor e aroma aos queijos. As enzimas que catalisam estas reações são liberadas pelos microrganismos do fermento lático.
De acordo com sua temperatura ótima de crescimento, os fermentos são classificados em:
Mesofílicos
Antes
|
Agora
|
Tipo
|
Streptococcus lactis |
Lactococcus lactis subsp. lactis |
Homofermentadora |
Streptococcus cremoris |
Lactococcus lactis subsp. cremoris |
Homofermentadora |
Streptococcus lactis
var. diacetylactis |
Lactococcus lactis subsp. lactis biovar
diacetylactis |
Heterofermentadora |
Leuconostoc cremoris |
Leuconostoc mesenteroides subsp.
cremoris |
Heterofermentadora |
Termofílicos
Antes
|
Agora
|
Tipo
|
Streptococcus thermophilus |
Streptococcus thermophilus |
Homofermentadora |
Lactobacillus bulgaricus |
Lactobacillus delbrueckii
subsp. bulgaricus |
Homofermentadora |
Lactobacillus helveticus |
Lactobacillus helveticus |
Homofermentadora |
Propionibacterium shermani |
Propionibacterium
freudenreichii subsp. shermani |
Heterofermentadora |
As culturas mesofílicas são normalmente utilizadas na fabricação de queijos frescos, de massa crua e de massa semicozida.
Pode-se ter no produto final um queijo de textura fechada ou com a presença de olhaduras regulares. O sabor do queijo pode ser mais ou menos acentuado, dependendo do tipo de cultura utilizada.
As culturas termofílicas são compostas por bactérias que se desenvolvem melhor em meios com temperaturas mais elevadas como, por exemplo, 42 – 45ºC.
Seu uso é indicado para os queijos de massa cozida (aqueles cuja temperatura de cozimento da massa chega a 50ºC). Podem-se formar culturas mistas mesofílicas e termofílicas (80% e 20% respectivamente).
As culturas homofermentadoras produzem ácido lático (cerca de 90%) a partir da fermentação da lactose e não produzem gases (indicada para queijos de massa fechada, sem olhaduras e pouco aroma).
Já as culturas heterofermentadoras produzem ácido lático a partir da fermentação da lactose e produzem compostos aromáticos (diacetil) e gás carbônico a partir da fermentação do citrato do leite. É indicado para queijos onde se deseja um aroma mais forte e a formação de olhaduras regulares na massa.
Comercialmente, eles são classificados em:
Tipo O
Composição: Lactococcus lactis subsp lactis e
Lactococcus lactis subsp cremoris.
Utilização: Minas Padrão, Prato, Mussarela, Saint-Paullin, etc.
Função: acidificação, não produz olhaduras.
Tipo D
Composição: Lactococcus lactis subsp lactis, Lactococcus lactis subsp cremoris e
Lactococcus lactis biovar diacetylactis.
Utilização: Queso blanco, manteiga, cottage.
Função: acidificação, aroma e muito gás.
Tipo L
Composição: Lactococcus lactis subsp lactis, Lactococcus lactis subsp cremoris e
Leuconostoc cremoris.
Utilização: Buttermilk, Gouda, Edan.
Função: acidificação, aroma, e gás.
Tipo LD
Composição: Lactococcus lactis subsp lactis, Lactococcus lactis subsp cremoris, Leuconostoc cremoris e
Lactococcus lactis biovar diacetylactis.
Utilização: Prato, Gouda, Edan, Danbo, Tybo, Manteiga, etc.
Função: acidificação, aroma e olhaduras.
Características básicas de cada cultura láctea
Mesofílicos
Espécie
|
Acidez
|
Proteólise
|
Produção de Gás
|
Metabolismo do citrato
|
Lactococcus lactis
subsp. lactis |
+++ |
Média proteólise |
Sem produção |
+ ou - |
Lactococcus lactis
subsp. cremoris |
+++ |
Média proteólise |
Sem produção |
+ ou - |
Lactococcus lactis
subsp. lactis biovar
diacetylactis |
++ |
Média proteólise |
Alta produção |
+++ |
Leuconostoc
mesenteroides
subsp. cremoris |
+ |
Média proteólise |
Média produção |
+ |
Termofílicos
Espécie
|
Acidez
|
Proteólise
|
Produção de Gás
|
Metabolismo do citrato
|
Streptococcus
thermophilus |
Rápida produção, em pequena quantidade |
Baixa proteólise |
Sem produção |
- |
Lactobacillus
delbrueckii subsp.
bulgaricus |
Rápida produção, em grande quantidade |
Média proteólise |
Sem produção |
- |
Lactobacillus
helveticus |
Lenta produção, em grande quantidade |
Média proteólise |
Sem produção |
- |
Propionibacterium
freudenreichii subsp.
shermani |
- |
- |
Rápida e
Intensa produção de gás |
- |
- Lactococcus - são cocos Gram-positivos pertencentes ao grupo das bactérias lácticas. Trata-se de microrganismos que produzem exclusivamente ácido lático. Crescem a 10ºC, com temperatura ótima em torno de 30ºC. Não crescem na presença de 6,5% de NaCl, nem em pH 9,6. São usados amplamente na indústria de laticínios por causa da sua capacidade de produzir ácido lático e aroma, bem como à sua segurança para o consumo humano, visto que são geralmente conhecidos como seguros. Constitui cerca de 90% da população de microrganismos componentes de fermentos empregados na fabricação de manteiga, queijo, buttermilk e sour cream.
- Lactobacillus - apresentam-se na forma de bacilo ou cocobacilo frequentemente organizados em cadeia. São frequentativos, aerotolerantes, mas crescem bem em condições de anaerobiose. Preferem condições relativamente ácidas. Em queijos, as espécies Lb. helveticus, Lb. delbrueckii subsp. bulgaricus, Lb. Delbrueckii subsp. lactis são utilizadas como culturas startes para diversos tipos de queijos, como Emmental, Provolone, Gorgonzola, Mussarela, entre outros.
- Leuconostoc - o gênero inclui 23 espécies. As principais espécies associadas com produtos lácteos são: L. mesenteroides subsp. cremoris e L. latis. Durante a fermentação, produtos do metabolismo primário dos carboidratos, como os ácidos orgânicos, contribuem para a preservação do produto, porém sua principal importância tecnológica diz respeito à formação do aroma e textura, principalmente pela produção de CO2 e síntese de diacetil.
- Streptococcus - trata-se de uma bactéria láctica termofílica com capacidade de fermentar e converter rapidamente a lactose em ácido lático, causando rápida diminuição do pH. Tem sido tradicionalmente utilizado na produção de iogurte e vários tipos de queijos, como Mussarela, Cheddar, Emmental, Gruyère, Parmigiano, entre outros.
- Actinobacteria – a classe inclui vários gêneros com espécies de interesse industrial, principalmente na produção de queijos. A presença de bactérias propiônicas endógenas ou adicionadas ao leite na forma de fermento é indispensável para conferir as características essenciais de sabor e textura de vários queijos de massa cozida, como Gruyère e Emmental.
Culturas propiônicas
Podem ser encontradas naturalmente no leite, em alguns casos sendo indesejáveis por suas características, podendo resistir ao tratamento térmico do leite.
A principal espécie é o
Propionibacterium freudenreichii subsp. shermanii e
Propionibacterium freudenreichii subsp globosum. São Gram +, preferem anaerobiose, não formam esporos, são sensíveis ao pH baixo, sal e nitratos. A temperatura ótima de crescimento é 30ºC.
Por meio da fermentação do lactato, produzem ácido propiônico, ácido acético, e CO2. O ácido propiônico junto com os aminoácidos propina e hidroxiprolina auxiliam na formação do gosto adocicado do Emmental.
Utilizado em queijos com olhaduras como: Gouda brasileiro, Emmental, Prato Esférico, Gruyère.
Mofos e Leveduras
Os mofos e leveduras também são microrganismos muito importantes na fabricação de derivados lácteos. Eles podem se desenvolver em queijos naturalmente (maturação de queijos em cavernas francesas), como podem ser intencionalmente adicionados ao leite.
Os mais conhecidos e utilizados nas indústrias, são:
Penicillium glaucum (ou roqueforti)
De crescimento rápido, possui elevados índices de proteólise e lipólises. Usado em queijos azuis (Roquefort, Gorgonzola, Stilton, Danablu, Blue, etc.). No mercado há várias cepas, com capacidades lipolítica e proteolítica diferentes e podem ser adicionado ao leite ou à massa. Resiste até 13% de sal na umidade. É aeróbio e cresce bem em pH de 4,6 a 4,8.
Penicillium candidum (ou camemberti)
Crescimento rápido, dificultando o desenvolvimento de contaminantes como leveduras, outros mofos e bactérias. Cor muito branca, micelium curto e índices de proteólise e lipólise médios garantindo harmonia entre sabor e aroma. Mofo branco com aspecto aveludado. Usado em Camembert, Brie e queijos de leite de cabra. Crescem bem em pH de 4,7 a 4,8. Se desenvolve em até 10% de sal na umidade. Pode ser adicionado ao leite, pulverizado na superfície do queijo ou colocado na salmoura.
Geotrichum candidum
Cultura complementar. Seu crescimento modifica o meio favorecendo e controlando o desenvolvimento do
Penicillium candidum. Propicia a formação de sabor e aroma distintos, contribui para evitar a formação de sabor amargo e previne o crescimento de mofos, leveduras e bactérias indesejáveis. Utilizado em queijos de mofo branco e de casca lavada como: Camembert, Brie e Pont l'Éveque, Reblochon.
Leveduras
Considerava-se que o papel das leveduras na fabricação de queijos era apenas danoso, porém, recentemente tem sido considerado mais positivo. O uso de leveduras é interessante para a neutralização da massa através do consumo de ácido lático e lactato como fonte de carbono. São uma importante fonte de enzimas, o que lhes confere papel coadjuvante preponderante na produção de substâncias destinadas a melhorar o crescimento de outros microrganismos.
As leveduras podem ser usadas em:
Queijos de casca lavada, como Reblochon, Tallegio, Munster e Limburgo - como microflora superficial;
[caption id="attachment_3639" align="aligncenter" width="300"]
Fotografias de Zubro[/caption]
Camembert e Brie - quando usadas, são as primeiras a se implantar na casca. Elas têm papel importante na estrutura e nas características organolépticas desses queijos;
[caption id="attachment_3640" align="aligncenter" width="300"]
Coyau / Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0[/caption]
Queijos azuis - podem ser usadas com o objetivo de promover a abertura interna da massa através da produção de CO2.
[caption id="attachment_3641" align="aligncenter" width="300"]
Queijo Stilton azul[/caption]
A natureza é realmente incrível, não acha?
Cada microrganismo é capaz de gerar uma transformação única no queijo.
Nos queijos artesanais temos a ação das bactérias naturalmente presentes no leite e no ambiente. Elas são capazes de produzir uma infinidade de aromas e sabores e diferem de região para região.
Mas isso é assunto para a nossa amiga
Michelle.
Produzir queijos é realmente uma arte! Até a próxima...
BIBLIOGRAFIA:
- João Pedro de M. Lourenço Neto. Queijos - Aspectos tecnológicos. Juiz de Fora, julho 2013.
- Alberto Munck. Finalidades do fermento lático na fabricação de queijos.
- Cláudia Lúcia de Oliveira Pinto, et al.. Qualidade microbiológica do leite cru. Viçosa, MG: EPAMIG Zona da Mata, p. 157- 171, 2013).
Ygor Ravazzi é Técnico em Laticínios pelo renomado Instituto de Laticínios Cândido Tostes, Graduando em Gestão da Qualidade pela UniCesumar. Iniciou sua carreira na área comercial, tendo atuado como Representante Comercial em importantes Empresas do segmento Lácteo, como Andritz Separation, Fermentech, Coalhopar e Casa Forte. Possui uma Empresa de Consultoria Técnica e atualmente é Químico Industrial na Frutal Indústria e Comércio. Linkedin:
https://www.linkedin.com/in/caseuslac/